Páginas

terça-feira, 30 de junho de 2020

Constituição - Definição, Doutrina, Classificação - Parte 1

Assim como ocorre com a maior parte dos sistemas jurídicos do mundo, o Brasil possui um texto legal que ocupa um papel central em sua estrutura jurídica: A Constituição. A atual, particularmente, foi promulgada em 1988, e marcou o fim do estado ditatorial em que o país se viu mergulhado desde 1964. 

A CF/88, como é normalmente chamada de forma abreviada, não foi o primeiro instrumento dessa natureza na história brasileira, e sua criação foi fruto de um processo histórico que caminhou junto com uma tendência similar de outros países do mundo de escreverem constituições, ao longo dos três últimos séculos.

 Assim, a história do Direito e da Sociedade humana moderna está intimamente ligada ao processo de constitucionalização de direitos, o que torna evidente a importância de seu estudo, tanto do ponto de vista do Direito, quanto da História, Sociologia e de outras ciências humanas.

É importante saber primeiramente, qual é o conceito de Constituição, tarefa essa por vezes considerada difícil devido às múltiplas dimensões que o fenômeno constitucional adquiriu ao longo da história, e também de acordo com os diferentes povos e regiões nos quais se estabeleceu.

Tradicionalmente no Brasil, adota-se a definição de que a Constituição seria um documento ou grupo de documentos, escritos ou não, de hierarquia superior às outras normas de um ordenamento jurídico, e cuja função seria regular o exercício do poder por um Estado, a escolha de seus líderes e os direitos do cidadão comum frente a esse Estado.

A partir dessa definição, cria-se uma distinção entre o que seria a Constituição Formal e a Constituição Material. Por “material”, entendemos que uma norma é Constitucional devido à matéria (conteúdo) de que trata. Se tal norma versar sobre a organização do Estado, por exemplo, essa norma seria materialmente constitucional, mesmo se estiver fora do corpo da Constituição.

Alguns autores, por exemplo, defendem que a legislação eleitoral seria uma norma materialmente constitucional mesmo estando fora da Constituição.* (Ver a respeito: Paulo Roberto de Figueiredo Dantas, citando Manoel Gonçalves Ferreira Filho em “Direito processual constitucional , 7 ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2017)

 Por “formal”, entendemos que uma regra seja constitucional apenas devido à sua localização no texto do ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, seria uma norma constitucional apenas devido à forma de sua criação.

Um exemplo muito utilizado desse tipo de regra é o caso do art. 242 §2º da CF/88, que estabelece que o Colégio Dom Pedro II no Rio de Janeiro será mantido em órbita federal:

Art. 242. O princípio do art. 206, IV, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos.

    (...)

§ 2º O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal.

Esse artigo não trata de nenhum dos temas que a doutrina entende serem tradicionais e típicos das normas constitucionais (forma de governo, direitos fundamentais e etc…), e sim de uma peculiaridade em relação a uma instituição de tradição e valor históricos diferenciados. Ainda assim essa regra é considerada constitucional, devido à sua FORMA de criação: ela foi criada como uma parte da CF/88 logo é de natureza constitucional.

Cumpre destacar que o costume de usar esse tipo de classificações vêm sofrendo críticas doutrinárias no Brasil, devido às contradições geradas na prática em sua aplicação. Em razão disso, os próximos posts serão destinados a conhecer mais sobre as outras classificações, bem como sobre diferentes concepções sobre a natureza das Constituições.


 

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Responsabilidade Ambiental


Acidentes ou crimes ambientais, como o recente rompimento da barragem de Brumadinho em Minas Gerais, geram frequentemente sentimentos de angústia e revolta, sendo natural que a sociedade deseje a criação de mecanismos que evitem ocorrências semelhantes no futuro.

No âmbito jurídico, um dos institutos que podem ser utilizados com essa finalidade é o da responsabilidade ambiental. Para a devida compreensão desse assunto, porém, convém analisar antes do que se trata o instituto da responsabilidade no direito.

Responsabilidade

A responsabilidade pode ser definida, de forma abstrata, como a obrigação que uma determinada pessoa tem de reparar a outra em decorrência de uma conduta antijurídica, além de arcar com as eventuais sanções que aquele ato possa gerar. Dessa forma, uma pessoa que provoca um acidente de trânsito é responsável pelos danos dele decorrentes, e tem a obrigação de indenizar as vítimas.

Existem três tipos de responsabilidade: a responsabilidade penal, a responsabilidade administrativa e a responsabilidade civil.

A responsabilidade penal está relacionada às leis penais, como por exemplo os crimes que são encontrados no Código Penal Brasileiro. Já a responsabilidade administrativa nasce de um ato da administração pública, como uma multa gerada em uma fiscalização trabalhista ou em decorrência de uma infração de trânsito, por exemplo.

Por fim, a responsabilidade civil nasce de um dano causado por uma pessoa à outra, e se refere, no geral a uma reparação de caráter econômico, como uma indenização por exemplo.

Responsabilidade Objetiva e Subjetiva

A responsabilidade civil pode se configurar de forma objetiva ou subjetiva. E o que isso significa?

A responsabilidade subjetiva tem como requisitos a existência do dano, o nexo de causalidade entre este e o agente, e a culpa ou dolo.

Por nexo de causalidade, entendemos que o dano não teria ocorrido sem que o agente tivesse executado uma determinada ação na cadeia de eventos que resultaram no dano.

No contexto da configuração da responsabilidade civil, a expressão “culpa”, faz referência ao agente que agiu com imperícia ou imprudência. Imperícia significa que o agente executava uma determinada atividade sem ter o treinamento correto para isso. É o caso de uma pessoa que dirige sem carteira de motorista, ou que porte uma arma sem ter o devido treinamento para saber manuseá-la.

Por imprudência, entendemos que o agente pode até mesmo ter a qualificação necessária para executar a atividade, porém agiu de forma desleixada, descuidada. É o caso de uma pessoa que atropela um pedestre por dirigir de forma descuidada. Nesse caso, a imprudência fica caracterizada independente do fato de o motorista possuir ou não a carteira de motorista.

Cumpre ressaltar que a mera ocorrência de um acidente não significa automaticamente a configuração da culpa. Imaginemos um motorista de caminhão, devidamente qualificado para exercer sua profissão, dirigindo dentro dos limites de velocidade em uma rodovia, com o caminhão em bom estado de conservação. Subitamente, um pedestre sofrendo de pensamentos suicidas, que se ocultava em uma moita nas proximidades, pula na rodovia e é atingido pelo caminhão. Nesse caso o motorista não agiu com imperícia nem imprudência, e não pode ser responsabilizado.

Por dolo, entendemos que o agente teve a intenção de causar o dano. É o caso de uma pessoa que quebra a janela de um vizinho devido a alguma desavença, por exemplo.

Em regra, a responsabilidade civil exige esses requisitos para a sua configuração, porém, em alguns casos especiais, a lei prevê que a responsabilidade seja objetiva, ou seja, dispensa-se o requisito do dolo ou da culpa. A ocorrência desses casos costuma estar amparada na chamada Teoria do Risco.

Teoria do Risco

O instituto da Teoria do Risco tem seu nascimento a partir da discussão sobre qual é o papel do empresário na economia. Afinal, quem de fato despende a sua força de trabalho para produzir os objetos que são oferecidos no mercado é o trabalhador, e mesmo assim é o empresário que fica com os lucros do empreendimento.

Surgiu, diante dessa questão, a teoria de que a função do empresário na economia seria a de assumir os riscos pelas atividades econômicas.

Determinadas atividades geram um risco para a coletividade. No exemplo da mineração, há o risco oferecido pelas explosões, desabamentos ou rompimento de barragens. Como é o empresário que lucra com essa atividade, nada mais justo que ele arque com os riscos que ela produz, do contrário estaríamos privatizando os lucros e socializando os riscos da mineração.


Na legislação brasileira, a Teoria do Risco é adotada expressamente em diversos dispositivos legais, sendo central o artigo 927, parágrafo único, do Código Cvil:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Ou seja, se alguém pratica uma determinada atividade geradora de risco por sua própria natureza, deverá se responsabilizar por esse risco.

Exemplos de violação a esse conceito, contudo, não faltam. Recentemente vários moradores da região de Nova Lima MG tiveram que ser evacuados devido ao risco de rompimento de uma barragem próxima às suas casas. O risco do rompimento foi criado por uma mineradora privada, contudo, o ônus econômico de evacuar a população teve que ser suportado pelo Estado. Além disso quando acidentes ocorrem, muitas vezes a população arca com os prejuízos de ter que reconstruir as suas casas, além do sofrimento emocional causado pelas mortes e pela destruição de bens culturais de valor inestimável.

Por esse motivo, não tem procedência algumas declarações feitas ao público, com o objetivo de defender a Vale do Rio Doce no caso da Barragem de Brumadinho, de que a empresa não poderia ser responsabilizada por um acidente imprevisível.

Mesmo que esse acidente fosse inevitável ( o que não é o caso) o seu risco foi gerado pela empresa, e é ela que lucra com a atividade econômica da mineração, logo, não pode se eximir de reparar os danos dela decorrentes.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Extradição, Expulsão e Deportação



O tema da extradição, deportação e da expulsão motivam confusões frequentes na mídia e na linguagem cotidiana, onde são muitas vezes utilizados como sinônimos. Contudo, tendo em vista que vivemos em um mundo globalizado, é essencial saber distinguir entre esses termos.



A deportação é o ato pelo qual o Poder Público remete ao seu país de origem o estrangeiro que entrou ou que permaneceu no Brasil de forma irregular. É o caso, por exemplo, de um imigrante de um país pobre que tenha adentrado no território nacional sem a documentação pertinente, ou ainda do turista que aqui permanece por mais tempo do que o seu visto lhe permitia. Esse instituto está previsto na  lei Nº 13.445 de 2017 (Estatuto do Estrangeiro):



Art. 47. A repatriação, a deportação e a expulsão serão feitas para o país de nacionalidade ou de procedência do migrante ou do visitante, ou para outro que o aceite, em observância aos tratados dos quais o Brasil seja parte.



É importante observar que a deportação não depende do cometimento de nenhum crime pelo estrangeiro, bastando a mera irregularidade de sua permanência no Brasil.



Já  extradição, ocorre quando algum Estado pede ao governo Brasileiro que entregue algum estrangeiro presente em território nacional para que possa ser julgado por alguma infração que envolva o Estado requerente. O Brasil não extradita aqueles que sejam acusados dos chamados “crimes de opinião”, ou seja, aqueles casos nos quais uma pessoa esteja sendo perseguida apenas por sustentar um posicionamento político diverso do seu Estado de origem. Também não podem ser extraditados os brasileiros natos.



A extradição depende, portanto, do cometimento de um crime pelo estrangeiro e de um pedido feito por outro país, independentemente da regularidade ou irregularidade de sua documentação.



Por fim, o ordenamento jurídico brasileiro também prevê a hipótese da expulsão, que acontece quando o estrangeiro comete algum crime em território nacional e, além de ser remetido de volta ao país de sua origem, como acontece na deportação, também fica impedido de retornar ao Brasil enquanto durar a expulsão. O brasileiro nato não pode ser expulso do país.Tal instituto está previsto no artigo 54 da lei  Nº 13.445 de 2017:



Art. 54.  A expulsão consiste em medida administrativa de retirada compulsória de migrante ou visitante do território nacional, conjugada com o impedimento de reingresso por prazo determinado.
§ 1o  Poderá dar causa à expulsão a condenação com sentença transitada em julgado relativa à prática de:
I - crime de genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão, nos termos definidos pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, promulgado pelo Decreto no 4.388, de 25 de setembro de 2002; ou
II - crime comum doloso passível de pena privativa de liberdade, consideradas a gravidade e as possibilidades de ressocialização em território nacional.




quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Qual a diferença entre Direitos Fundamentais e Garantias Fundamentais?


Frequentemente escutamos no direito ou na política a expressão “direitos e garantias fundamentais”, como se fossem uma coisa só, e sem que nunca seja feita uma distinção entre esses dois termos. Contudo, embora estejam intimamente relacionados, direitos fundamentais e garantias fundamentais tratam-se de coisas distintas.

Por “direitos fundamentais” entendemos aquelas proteções e expectativas de serviços essenciais que o indivíduo tem em face do Estado, ao passo que a garantia fundamental é um instrumento que visa conferir efetividade a esses direitos. A distinção fica clara se tomarmos como exemplo o direito de ir e vir, que se trata do direito fundamental que o indivíduo tem de que o Estado não interfira arbitrariamente na sua capacidade de se locomover livremente. O habeas corpus, previsto no artigo 5º inc LXVIIi da cf 88, é uma ação constitucional destinada a defender esse direito:



Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;



As garantias fundamentais são, dessa forma, uma espécie de “metadireito”, destinadas a proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Qual é a Diferença entre Porte e Posse de Armas?



Recentemente, em uma declaração feita à imprensa, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional do novo Governo, General Heleno, mencionou em entrevista uma distinção presente no Estatuto do Desarmamento (lei 10.826) que é pouco conhecida pela população brasileira em geral: a distinção entre posse e porte de armas. Mas qual é a diferença?

Essa lei estabelece, em seu artigo 4º, os requisitos para  se adquirir, ou seja, ter a propriedade, de uma arma de fogo, entre os quais se incluem a declaração pela sua efetiva necessidade e a comprovação de idoneidade do interessado. 

O artigo 5º dessa lei, contudo, esclarece que o atendimento a esses requisitos permite ao usuário apenas manter a arma exclusivamente em seu domicílio ou local de trabalho.

Para efetivamente andar armado, ou seja, ter o porte da arma, o interessado deve se enquadrar em um dos casos previstos no artigo 6º do Estatuto do Desarmamento ou em alguma outra legislação que crie novas previsões de porte.

É o caso dos integrantes das Forças Armadas, por exemplo. Ou seja, a permissão para possuir uma arma se refere à possibilidade de comprar esses objetos e mantê-los guardados em casa ou no trabalho. Já a permissão para o porte se refere à permissão para efetivamente carregar a arma consigo.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Controle de Constitucionalidade - Teoria Geral - Parte 2







Na Primeira postagem acerca do Controle de Constitucionalidade, foi definido que este se divide entre controle concentrado e controle difuso, sendo o primeiro exercido principalmente através de ADPF e ADI, e o segundo exercido principalmente através dos recursos Extraordinários. Logo em seguida foi tratado do fenômeno da recepção das normas, destacando-se que para uma norma ser recepcionada pela nova ordem constitucional, ela deve preencher alguns requisitos:



1- A norma deve ter sido editada antes da Constituição atual.



2- A norma deve se encontrar em vigor.



3- A norma deve ter compatibilidade meramente material com a nova Constituição.



4- A norma deve ter sido materialmente e formalmente compatível com a Constituição da época em que foi editada.



Destes fatos extraem-se portanto duas regras: não existe constitucionalidade superveniente, e também não existe inconstitucionalidade superveniente (porque neste caso estaríamos falando de recepção, e não de constitucionalidade). Essas regras, contudo, comportam exceções.



No primeiro caso, uma exceção poderia ser encontrada na criação do Município de Luís Eduardo Magalhães. Esse Município foi desmembrado a partir da cidade de Barreiras, na Bahia, e, após cinco anos de existência, com a burocracia municipal já formada e consolidada, foi proposta a ADI 2240, defendendo a tese de que a sua criação havia sido inconstitucional. E sobre quais argumentos a tese da inconstitucionalidade foi levantada? O Capítulo I do Título III da Constituição Federal de 1988 assim dispõe sobre a organização político-administrativa do Estado:




Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

§ 1º Brasília é a Capital Federal.

§ 2º Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar.

§ 3º Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.

§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei



Ou seja, a criação de Municípios é feita por lei estadual, condicionada a um Plebiscito e após a divulgação dos estudos de viabilidade Municipal.

Ocorre que a Lei Complementar Federal não havia sido editada na época ( e ainda não foi editada até hoje), o que resultou no desrespeito aos parâmetros definidos no texto constitucional. Dessa forma, a lei de criação do município era claramente inconstitucional



Devido às condições práticas envolvidas no caso, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da lei, porém modulou os efeitos da decisão (assunto que será tratado em postagens futuras), para que ela só passasse a ter efeitos a partir de 24 meses depois de seu pronunciamento, período que seria suficiente para que o Congresso Federal editasse a lei necessária para regular a criação de municípios, para que então fossem corrigidas as irregularidades do ato de criação de Luís Eduardo Magalhães.



Ocorre que o Congresso Nacional permaneceu inerte nesse período de 24 meses, o que gerou um temor em relação aos efeitos negativos que a administração de Luís Eduardo Magalhães poderia sofrer. Pouco antes do prazo se esgotar completamente, contudo, o Congresso Nacional editou a Emenda à Constituição (EC) nº 57/2008, dispondo o seguinte:



Art. 1º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 96:



"Art. 96. Ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época de sua criação."


Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.



Ou seja, o Congresso convalidou, por meio de uma emenda, a criação do Município de Luís Eduardo Magalhães. Curiosamente, a publicação da referida emenda representou a segunda exceção ao princípio da vedação à constitucionalidade superveniente: a hipótese de o Congresso convalidar um ato por meio de uma emenda. Esse tema não é pacífico, contudo, na doutrina, e muitos estudiosos têm argumentado que a EC 57/2008 é inconstitucional. No âmbito jurídico, contudo, a questão ainda não foi debatida, pois o STF ainda não teve a oportunidade de se manifestar sobre esse tema.



Já no caso da segunda regra, referente à vedação da inconstitucionalidade superveniente, podemos encontrar uma exceção no fenômeno da mutação constitucional. E o que isso significa? A mutação constitucional acontece quando a interpretação de uma determinada norma constitucional muda devido a mudanças ocorridas na sociedade. O texto da Constituição, contudo, permanece o mesmo, e nenhuma lei é editada no ordenamento jurídico, e, por essa razão, esse fenômeno é visto como uma manifestação do “poder constituinte difuso”, que seria exercido pelo povo por meio de decisões judiciais que cristalizam mudanças sociais mais amplas. Foi o que aconteceu com o caso da ADI 4277, que versava sobre a possibilidade do casamento homoafetivo no Brasil. Assim dispõe a Constituição em seu artigo 226:



Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.



Por sua vez, no Código Civil, encontramos a seguinte redação:



Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.



Percebe-se que a redação da Constituição não vedava expressamente o casamento homoafetivo no Brasil, e, pelo seu texto, é possível extrair duas interpretações: uma delas, mais literal, e que vigorava até o período anterior da ADI 4277/2011, dizia que a Cf/88 não previa expressamente o casamento homoafetivo, e, logo, este não seria possível, inclusive porque a redação do Código Civil de 2002 era ainda mais restritiva do que a constitucional. A segunda interpretação, que tornou-se obrigatória nos cartórios e tribunais a partir de 2011 por determinação do STF, defendia que se a CF/88 não permitia expressamente, e também não vedava o casamento homoafetivo, então essa lacuna deveria ser preenchida por meio de uma interpretação focada nos Princípios Constitucionais, que estão dispersos pela Cf/88, com o objetivo de se interpretar o texto como um todo coerente. A Constituição, por sua vez, previu o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos seus pilares fundamentais, e, logo, concluiu-se que interpretar o artigo 226 da cf/88 restritivamente seria uma ofensa a esse princípio fundamental, e tornaria o sistema incoerente como um todo. Logo, o STF determinou que o artigo 226 §3º deveria ser obrigatoriamente interpretado de forma ampliada, e, como resultado, o casamento homoafetivo passou a ser permitido no Brasil, sem que houvesse qualquer necessidade de mudança no texto legal.



A segunda possibilidade de exceção se refere à mudança do substrato fático da norma. o exemplo mais recente acerca desse fenômeno ocorreu com a proibição do uso do amianto na ADI 3937. Esta ação havia sido proposta pela Confederação nacional dos Trabalhadores da indústria, contra a Lei 12.687/2007 do Estado de São Paulo, que proibiu o uso do amianto naquele estado. O STF julgou a ação improcedente e, incidentalmente, julgou também pela inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Federal 9.055/1995, que permitia o uso controlado dessa substância. Na época em que havia sido editada a lei 9055/95, a comunidade científica considerava que o uso do amianto era possível, sob determinadas regras. Contudo, houve uma evolução tecnológica, possibilitando o uso de substâncias substitutivas ao amianto, e novos estudos mostraram que esse mineral era muito mais cancerígeno do que antes se pensava. Ou seja, por causa do substrato fático, que no caso era o conhecimento científico acerca dessa substância, a constitucionalidade de uma lei foi modificada.





Estas são, portanto, as exceções às duas regras gerais do controle de constitucionalidade. Esse post foi feito tendo como base as aulas do Professor Pedro Lenza no Programa Saber Direito, as quais eu recomendo o estudo.



sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Controle de Constitucionalidade - Teoria Geral - parte 1




Em casos de rompimento com uma ordem constitucional, muitas vezes os aplicadores do direito se deparam com um problema:  o que fazer com as normas antigas?



Alguns exemplos desse problema podem ser encontrados na história recente do Brasil, como no caso da antiga Lei de Imprensa, revogada após o julgamento da ADPF 130 pelo Supremo Tribunal Federal em 2009.



No Brasil, o controle de constitucionalidade pode ser feito tanto por via difusa quanto de forma concentrada. Por via difusa, entende-se que a tese chega à Suprema Corte por meio de recursos em um processo comum, ou seja, o processo inicia-se na primeira instância, ou em outra instância excepcionalmente prevista na lei, e chega ao Supremo Tribunal Federal por meio de recursos, geralmente por Recurso Extraordinário.



O controle de constitucionalidade concentrado ocorre quando um dos legitimados previsto na lei ajuíza uma ação diretamente a um tribunal competente para fazer o controle de constitucionalidade. Os dois tipos de ação mais conhecidas dessa natureza no Brasil são a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) e a ADI ( Ação Direta de Inconstitucionalidade). Essas ações serão tratadas     com mais detalhes em posts futuros.



No que se refere à parte do ordenamento jurídico que está submetida à nova Constituição, é importante destacar os fenômenos da recepção, da repristinação, da desconstitucionalização e da recepção material de normas constitucionais.



O fenômeno da recepção é o que, espera-se, consiste na situação mais comum em relação às normas anteriores à edição de uma nova constituição, e ocorre quando uma determinada  lei encontra-se de acordo com a nova ordem constitucional. Esse fenômeno possui, entretanto, alguns pressupostos cuja importância deve ser ressaltada.



Os dois primeiros pressupostos da recepção são um tanto óbvios: para ser recepcionada, a lei deve ter sido editada antes da Constituição atual (do contrário estaríamos discutindo sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e não sua recepção) e deve se encontrar em vigor.



Em terceiro lugar, a lei deve ter compatibilidade MERAMENTE MATERIAL com a nova constituição. E o que isso significa?



Quando falamos da compatibilidade formal de uma lei, estamos nos referindo ao processo legislativo que deu origem a essa norma. Por exemplo: a CF/88 faz uma distinção entre a lei complementar e a lei ordinária. As leis complementares estão taxativamente previstas no texto constitucional, e exigem maioria absoluta (metade mais um dos membros do legislativo) para serem aprovadas. As leis ordinárias precisam de apenas a metade dos membros do legislativo presentes no momento da sessão para serem aprovadas. Se uma matéria reservada à lei complementar é aprovada com o quórum de uma lei ordinária, essa lei terá um vício formal portanto.



A compatibilidade material, por sua vez, se refere ao CONTEÚDO do texto da Constituição. Uma lei que procurasse abolir o voto universal, direto e secreto, teria incompatibilidade material com a CF/88, uma vez que o conteúdo do texto constitucional  veda a edição de leis dessa natureza.



Assim, para ser recepcionada, uma lei anterior à CF/88 terá que ser apenas materialmente compatível com a nova Constituição. E porque isso acontece? É porque não se pode exigir que o legislador, no momento em que elabora uma lei, seja capaz de prever as possíveis mudanças futuras no procedimento necessário para a edição de uma norma. um exemplo desse tipo de fenômeno pode ser encontrado em algumas leis tributárias hoje em vigor no Brasil. Parte dessa legislação foi editada antes de 1988 na forma de lei ordinária, e a CF/88 reservou esse assunto à lei complementar. Se a compatibilidade formal fosse exigida para a recepção, do dia para noite estas normas teriam perdido a sua validade, e o resultado teria sido um verdadeiro caos normativo.



Por outro lado, para que uma lei  seja recepcionada, ela também deve ter sido FORMALMENTE E MATERIALMENTE compatível com a constituição da época em que ela foi editada. Isso acontece porque a doutrina relacionada ao direito constitucional brasileiro adota a teoria da nulidade, e não da anulabilidade. E qual é a diferença entre estas duas teorias?



Um exemplo ilustrativo de atos nulos pode ser encontrado no Código Civil de 2002, que trata sobre os vícios do negócio jurídico (como um contrato viciado por exemplo; o tema dos negócios jurídicos será tratado em outro post posterior):



Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV - não revestir a forma prescrita em lei;
V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.



Todas as hipóteses exemplificadas no art. 166 têm uma coisa em comum: elas tratam de matérias consideradas de ordem pública. Por sua vez, quando dizemos que um ato é anulável, estamos afirmando que esse ato possui um vício, porém esse vício pode ser corrigido, conforme exemplificado no art 172 do Código Civil: “Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.”Ou seja, o ato anulável pode ser convalidado se for confirmado posteriormente pela parte que saiu prejudicada por ele. No geral, são matérias inseridas no âmbito da autonomia da vontade privada dos agentes nela envolvidos.





O professor Pedro Lenza utiliza uma metáfora interessante: quando uma lei é editada, é como se tirássemos uma “foto” dela e de todo o ordenamento jurídico em que ela está inserida. Quando a adequabilidade dessa norma é contestada, é como se a Suprema Corte tirasse essa foto da gaveta, para então estudar a sua constitucionalidade conforme os parâmetros da época. E isso acontece por uma razão inerentemente republicana: o processo legislativo não pertence aos ministros do STF para que eles possam livremente dispor sobre ele, e  um vício no surgimento de uma norma não é uma matéria afeita à autonomia da vontade de nenhum particular, pois o processo legislativo pertence a todos. Não existe, portanto, constitucionalidade superveniente.



Essa posição, contudo, não está imune a críticas, e a doutrina têm apontado a existência de exceções a esta regra. Esse assunto será, contudo, tratado no próximo post sobre Controle de Constitucionalidade, pois o conteúdo teve que ser dividido em algumas partes para que não ficasse muito extenso.



Esse post teve como fonte principal as lições do Professor Pedro Lenza na aula fornecida ao Saber Direito sobre o tema do Controle de Constitucionalidade, disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=XeAPtD0R_l0&t=13s.



Recomendo o estudo desta aula após a leitura deste post.