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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Controle de Constitucionalidade - Teoria Geral - Parte 2







Na Primeira postagem acerca do Controle de Constitucionalidade, foi definido que este se divide entre controle concentrado e controle difuso, sendo o primeiro exercido principalmente através de ADPF e ADI, e o segundo exercido principalmente através dos recursos Extraordinários. Logo em seguida foi tratado do fenômeno da recepção das normas, destacando-se que para uma norma ser recepcionada pela nova ordem constitucional, ela deve preencher alguns requisitos:



1- A norma deve ter sido editada antes da Constituição atual.



2- A norma deve se encontrar em vigor.



3- A norma deve ter compatibilidade meramente material com a nova Constituição.



4- A norma deve ter sido materialmente e formalmente compatível com a Constituição da época em que foi editada.



Destes fatos extraem-se portanto duas regras: não existe constitucionalidade superveniente, e também não existe inconstitucionalidade superveniente (porque neste caso estaríamos falando de recepção, e não de constitucionalidade). Essas regras, contudo, comportam exceções.



No primeiro caso, uma exceção poderia ser encontrada na criação do Município de Luís Eduardo Magalhães. Esse Município foi desmembrado a partir da cidade de Barreiras, na Bahia, e, após cinco anos de existência, com a burocracia municipal já formada e consolidada, foi proposta a ADI 2240, defendendo a tese de que a sua criação havia sido inconstitucional. E sobre quais argumentos a tese da inconstitucionalidade foi levantada? O Capítulo I do Título III da Constituição Federal de 1988 assim dispõe sobre a organização político-administrativa do Estado:




Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

§ 1º Brasília é a Capital Federal.

§ 2º Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar.

§ 3º Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.

§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei



Ou seja, a criação de Municípios é feita por lei estadual, condicionada a um Plebiscito e após a divulgação dos estudos de viabilidade Municipal.

Ocorre que a Lei Complementar Federal não havia sido editada na época ( e ainda não foi editada até hoje), o que resultou no desrespeito aos parâmetros definidos no texto constitucional. Dessa forma, a lei de criação do município era claramente inconstitucional



Devido às condições práticas envolvidas no caso, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da lei, porém modulou os efeitos da decisão (assunto que será tratado em postagens futuras), para que ela só passasse a ter efeitos a partir de 24 meses depois de seu pronunciamento, período que seria suficiente para que o Congresso Federal editasse a lei necessária para regular a criação de municípios, para que então fossem corrigidas as irregularidades do ato de criação de Luís Eduardo Magalhães.



Ocorre que o Congresso Nacional permaneceu inerte nesse período de 24 meses, o que gerou um temor em relação aos efeitos negativos que a administração de Luís Eduardo Magalhães poderia sofrer. Pouco antes do prazo se esgotar completamente, contudo, o Congresso Nacional editou a Emenda à Constituição (EC) nº 57/2008, dispondo o seguinte:



Art. 1º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 96:



"Art. 96. Ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época de sua criação."


Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.



Ou seja, o Congresso convalidou, por meio de uma emenda, a criação do Município de Luís Eduardo Magalhães. Curiosamente, a publicação da referida emenda representou a segunda exceção ao princípio da vedação à constitucionalidade superveniente: a hipótese de o Congresso convalidar um ato por meio de uma emenda. Esse tema não é pacífico, contudo, na doutrina, e muitos estudiosos têm argumentado que a EC 57/2008 é inconstitucional. No âmbito jurídico, contudo, a questão ainda não foi debatida, pois o STF ainda não teve a oportunidade de se manifestar sobre esse tema.



Já no caso da segunda regra, referente à vedação da inconstitucionalidade superveniente, podemos encontrar uma exceção no fenômeno da mutação constitucional. E o que isso significa? A mutação constitucional acontece quando a interpretação de uma determinada norma constitucional muda devido a mudanças ocorridas na sociedade. O texto da Constituição, contudo, permanece o mesmo, e nenhuma lei é editada no ordenamento jurídico, e, por essa razão, esse fenômeno é visto como uma manifestação do “poder constituinte difuso”, que seria exercido pelo povo por meio de decisões judiciais que cristalizam mudanças sociais mais amplas. Foi o que aconteceu com o caso da ADI 4277, que versava sobre a possibilidade do casamento homoafetivo no Brasil. Assim dispõe a Constituição em seu artigo 226:



Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.



Por sua vez, no Código Civil, encontramos a seguinte redação:



Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.



Percebe-se que a redação da Constituição não vedava expressamente o casamento homoafetivo no Brasil, e, pelo seu texto, é possível extrair duas interpretações: uma delas, mais literal, e que vigorava até o período anterior da ADI 4277/2011, dizia que a Cf/88 não previa expressamente o casamento homoafetivo, e, logo, este não seria possível, inclusive porque a redação do Código Civil de 2002 era ainda mais restritiva do que a constitucional. A segunda interpretação, que tornou-se obrigatória nos cartórios e tribunais a partir de 2011 por determinação do STF, defendia que se a CF/88 não permitia expressamente, e também não vedava o casamento homoafetivo, então essa lacuna deveria ser preenchida por meio de uma interpretação focada nos Princípios Constitucionais, que estão dispersos pela Cf/88, com o objetivo de se interpretar o texto como um todo coerente. A Constituição, por sua vez, previu o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos seus pilares fundamentais, e, logo, concluiu-se que interpretar o artigo 226 da cf/88 restritivamente seria uma ofensa a esse princípio fundamental, e tornaria o sistema incoerente como um todo. Logo, o STF determinou que o artigo 226 §3º deveria ser obrigatoriamente interpretado de forma ampliada, e, como resultado, o casamento homoafetivo passou a ser permitido no Brasil, sem que houvesse qualquer necessidade de mudança no texto legal.



A segunda possibilidade de exceção se refere à mudança do substrato fático da norma. o exemplo mais recente acerca desse fenômeno ocorreu com a proibição do uso do amianto na ADI 3937. Esta ação havia sido proposta pela Confederação nacional dos Trabalhadores da indústria, contra a Lei 12.687/2007 do Estado de São Paulo, que proibiu o uso do amianto naquele estado. O STF julgou a ação improcedente e, incidentalmente, julgou também pela inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Federal 9.055/1995, que permitia o uso controlado dessa substância. Na época em que havia sido editada a lei 9055/95, a comunidade científica considerava que o uso do amianto era possível, sob determinadas regras. Contudo, houve uma evolução tecnológica, possibilitando o uso de substâncias substitutivas ao amianto, e novos estudos mostraram que esse mineral era muito mais cancerígeno do que antes se pensava. Ou seja, por causa do substrato fático, que no caso era o conhecimento científico acerca dessa substância, a constitucionalidade de uma lei foi modificada.





Estas são, portanto, as exceções às duas regras gerais do controle de constitucionalidade. Esse post foi feito tendo como base as aulas do Professor Pedro Lenza no Programa Saber Direito, as quais eu recomendo o estudo.