Em casos de rompimento com uma ordem constitucional, muitas vezes os aplicadores do direito se deparam com um problema: o que fazer com as normas antigas?
Alguns
exemplos desse problema podem ser encontrados na história recente do
Brasil, como no caso da antiga Lei de Imprensa, revogada após o
julgamento da ADPF 130 pelo Supremo Tribunal Federal em 2009.
No
Brasil, o controle de constitucionalidade pode ser feito tanto por
via difusa quanto de forma concentrada. Por via difusa, entende-se
que a tese chega à Suprema Corte por meio de recursos em um processo
comum, ou seja, o processo inicia-se na primeira instância, ou em
outra instância excepcionalmente prevista na lei, e chega ao Supremo
Tribunal Federal por meio de recursos, geralmente por Recurso
Extraordinário.
O
controle de constitucionalidade concentrado ocorre quando um dos
legitimados previsto na lei ajuíza uma ação diretamente a um
tribunal competente para fazer o controle de constitucionalidade. Os
dois tipos de ação mais conhecidas dessa natureza no Brasil são a
ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) e a ADI (
Ação Direta de Inconstitucionalidade). Essas ações serão
tratadas
com
mais detalhes em posts futuros.
No
que se refere à parte do ordenamento jurídico que está submetida à
nova Constituição, é importante destacar os fenômenos da
recepção, da repristinação, da desconstitucionalização e da
recepção material de normas constitucionais.
O
fenômeno da recepção é o que, espera-se, consiste na situação
mais comum em relação às normas anteriores à edição de uma nova
constituição, e ocorre quando uma determinada lei encontra-se
de acordo com a nova ordem constitucional. Esse fenômeno possui,
entretanto, alguns pressupostos cuja importância deve ser
ressaltada.
Os
dois primeiros pressupostos da recepção são um tanto óbvios: para
ser recepcionada, a lei deve ter sido editada antes da Constituição
atual (do contrário estaríamos discutindo sua constitucionalidade
ou inconstitucionalidade, e não sua recepção) e deve se encontrar
em vigor.
Em
terceiro lugar, a lei deve ter compatibilidade MERAMENTE MATERIAL com
a nova constituição. E o que isso significa?
Quando
falamos da compatibilidade formal de uma lei, estamos nos referindo
ao processo legislativo que deu origem a essa norma. Por exemplo: a
CF/88 faz uma distinção entre a lei complementar e a lei ordinária.
As leis complementares estão taxativamente previstas no texto
constitucional, e exigem maioria absoluta (metade mais um dos membros
do legislativo) para serem aprovadas. As leis ordinárias precisam de
apenas a metade dos membros do legislativo presentes no momento da
sessão para serem aprovadas. Se uma matéria reservada à lei
complementar é aprovada com o quórum de uma lei ordinária, essa
lei terá um vício formal portanto.
A
compatibilidade material, por sua vez, se refere ao CONTEÚDO do
texto da Constituição. Uma lei que procurasse abolir o voto
universal, direto e secreto, teria incompatibilidade material com a
CF/88, uma vez que o conteúdo do texto constitucional veda a
edição de leis dessa natureza.
Assim,
para ser recepcionada, uma lei anterior à CF/88 terá que ser apenas
materialmente compatível com a nova Constituição. E porque isso
acontece? É porque não se pode exigir que o legislador, no momento
em que elabora uma lei, seja capaz de prever as possíveis mudanças
futuras no procedimento necessário para a edição de uma norma. um
exemplo desse tipo de fenômeno pode ser encontrado em algumas leis
tributárias hoje em vigor no Brasil. Parte dessa legislação foi
editada antes de 1988 na forma de lei ordinária, e a CF/88 reservou
esse assunto à lei complementar. Se a compatibilidade formal fosse
exigida para a recepção, do dia para noite estas normas teriam
perdido a sua validade, e o resultado teria sido um verdadeiro caos
normativo.
Por
outro lado, para que uma lei seja recepcionada, ela também
deve ter sido FORMALMENTE E MATERIALMENTE compatível com a
constituição da época em que ela foi editada. Isso acontece porque
a doutrina relacionada ao direito constitucional brasileiro adota a
teoria da nulidade, e não da anulabilidade. E qual é a diferença
entre estas duas teorias?
Um
exemplo ilustrativo de atos nulos pode ser encontrado no Código
Civil de 2002, que trata sobre os vícios do negócio jurídico (como
um contrato viciado por exemplo; o tema dos negócios jurídicos será
tratado em outro post posterior):
Art.
166. É nulo o negócio jurídico quando:
I
- celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II
- for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III
- o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV
- não revestir a forma prescrita em lei;
V
- for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para
a sua validade;
VI
- tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII
- a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem
cominar sanção.
Todas
as hipóteses exemplificadas no art. 166 têm uma coisa em comum:
elas tratam de matérias consideradas de ordem pública. Por sua vez,
quando dizemos que um ato é anulável, estamos afirmando que esse
ato possui um vício, porém esse vício pode ser corrigido, conforme
exemplificado no art 172 do Código Civil: “Art. 172. O negócio
anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de
terceiro.”Ou seja, o ato anulável pode ser convalidado se for
confirmado posteriormente pela parte que saiu prejudicada por ele. No
geral, são matérias inseridas no âmbito da autonomia da vontade
privada dos agentes nela envolvidos.
O
professor Pedro Lenza utiliza uma metáfora interessante: quando uma
lei é editada, é como se tirássemos uma “foto” dela e de todo
o ordenamento jurídico em que ela está inserida. Quando a
adequabilidade dessa norma é contestada, é como se a Suprema Corte
tirasse essa foto da gaveta, para então estudar a sua
constitucionalidade conforme os parâmetros da época. E isso
acontece por uma razão inerentemente republicana: o processo
legislativo não pertence aos ministros do STF para que eles possam
livremente dispor sobre ele, e um vício no surgimento de uma
norma não é uma matéria afeita à autonomia da vontade de nenhum
particular, pois o processo legislativo pertence a todos. Não
existe, portanto, constitucionalidade superveniente.
Essa
posição, contudo, não está imune a críticas, e a doutrina têm
apontado a existência de exceções a esta regra. Esse assunto será,
contudo, tratado no próximo post sobre Controle de
Constitucionalidade, pois o conteúdo teve que ser dividido em
algumas partes para que não ficasse muito extenso.
Esse
post teve como fonte principal as lições do Professor Pedro Lenza
na aula fornecida ao Saber Direito sobre o tema do Controle de
Constitucionalidade, disponível neste link:
https://www.youtube.com/watch?v=XeAPtD0R_l0&t=13s.
Recomendo
o estudo desta aula após a leitura deste post.