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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Controle de Constitucionalidade - Teoria Geral - parte 1




Em casos de rompimento com uma ordem constitucional, muitas vezes os aplicadores do direito se deparam com um problema:  o que fazer com as normas antigas?



Alguns exemplos desse problema podem ser encontrados na história recente do Brasil, como no caso da antiga Lei de Imprensa, revogada após o julgamento da ADPF 130 pelo Supremo Tribunal Federal em 2009.



No Brasil, o controle de constitucionalidade pode ser feito tanto por via difusa quanto de forma concentrada. Por via difusa, entende-se que a tese chega à Suprema Corte por meio de recursos em um processo comum, ou seja, o processo inicia-se na primeira instância, ou em outra instância excepcionalmente prevista na lei, e chega ao Supremo Tribunal Federal por meio de recursos, geralmente por Recurso Extraordinário.



O controle de constitucionalidade concentrado ocorre quando um dos legitimados previsto na lei ajuíza uma ação diretamente a um tribunal competente para fazer o controle de constitucionalidade. Os dois tipos de ação mais conhecidas dessa natureza no Brasil são a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) e a ADI ( Ação Direta de Inconstitucionalidade). Essas ações serão tratadas     com mais detalhes em posts futuros.



No que se refere à parte do ordenamento jurídico que está submetida à nova Constituição, é importante destacar os fenômenos da recepção, da repristinação, da desconstitucionalização e da recepção material de normas constitucionais.



O fenômeno da recepção é o que, espera-se, consiste na situação mais comum em relação às normas anteriores à edição de uma nova constituição, e ocorre quando uma determinada  lei encontra-se de acordo com a nova ordem constitucional. Esse fenômeno possui, entretanto, alguns pressupostos cuja importância deve ser ressaltada.



Os dois primeiros pressupostos da recepção são um tanto óbvios: para ser recepcionada, a lei deve ter sido editada antes da Constituição atual (do contrário estaríamos discutindo sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e não sua recepção) e deve se encontrar em vigor.



Em terceiro lugar, a lei deve ter compatibilidade MERAMENTE MATERIAL com a nova constituição. E o que isso significa?



Quando falamos da compatibilidade formal de uma lei, estamos nos referindo ao processo legislativo que deu origem a essa norma. Por exemplo: a CF/88 faz uma distinção entre a lei complementar e a lei ordinária. As leis complementares estão taxativamente previstas no texto constitucional, e exigem maioria absoluta (metade mais um dos membros do legislativo) para serem aprovadas. As leis ordinárias precisam de apenas a metade dos membros do legislativo presentes no momento da sessão para serem aprovadas. Se uma matéria reservada à lei complementar é aprovada com o quórum de uma lei ordinária, essa lei terá um vício formal portanto.



A compatibilidade material, por sua vez, se refere ao CONTEÚDO do texto da Constituição. Uma lei que procurasse abolir o voto universal, direto e secreto, teria incompatibilidade material com a CF/88, uma vez que o conteúdo do texto constitucional  veda a edição de leis dessa natureza.



Assim, para ser recepcionada, uma lei anterior à CF/88 terá que ser apenas materialmente compatível com a nova Constituição. E porque isso acontece? É porque não se pode exigir que o legislador, no momento em que elabora uma lei, seja capaz de prever as possíveis mudanças futuras no procedimento necessário para a edição de uma norma. um exemplo desse tipo de fenômeno pode ser encontrado em algumas leis tributárias hoje em vigor no Brasil. Parte dessa legislação foi editada antes de 1988 na forma de lei ordinária, e a CF/88 reservou esse assunto à lei complementar. Se a compatibilidade formal fosse exigida para a recepção, do dia para noite estas normas teriam perdido a sua validade, e o resultado teria sido um verdadeiro caos normativo.



Por outro lado, para que uma lei  seja recepcionada, ela também deve ter sido FORMALMENTE E MATERIALMENTE compatível com a constituição da época em que ela foi editada. Isso acontece porque a doutrina relacionada ao direito constitucional brasileiro adota a teoria da nulidade, e não da anulabilidade. E qual é a diferença entre estas duas teorias?



Um exemplo ilustrativo de atos nulos pode ser encontrado no Código Civil de 2002, que trata sobre os vícios do negócio jurídico (como um contrato viciado por exemplo; o tema dos negócios jurídicos será tratado em outro post posterior):



Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV - não revestir a forma prescrita em lei;
V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.



Todas as hipóteses exemplificadas no art. 166 têm uma coisa em comum: elas tratam de matérias consideradas de ordem pública. Por sua vez, quando dizemos que um ato é anulável, estamos afirmando que esse ato possui um vício, porém esse vício pode ser corrigido, conforme exemplificado no art 172 do Código Civil: “Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.”Ou seja, o ato anulável pode ser convalidado se for confirmado posteriormente pela parte que saiu prejudicada por ele. No geral, são matérias inseridas no âmbito da autonomia da vontade privada dos agentes nela envolvidos.





O professor Pedro Lenza utiliza uma metáfora interessante: quando uma lei é editada, é como se tirássemos uma “foto” dela e de todo o ordenamento jurídico em que ela está inserida. Quando a adequabilidade dessa norma é contestada, é como se a Suprema Corte tirasse essa foto da gaveta, para então estudar a sua constitucionalidade conforme os parâmetros da época. E isso acontece por uma razão inerentemente republicana: o processo legislativo não pertence aos ministros do STF para que eles possam livremente dispor sobre ele, e  um vício no surgimento de uma norma não é uma matéria afeita à autonomia da vontade de nenhum particular, pois o processo legislativo pertence a todos. Não existe, portanto, constitucionalidade superveniente.



Essa posição, contudo, não está imune a críticas, e a doutrina têm apontado a existência de exceções a esta regra. Esse assunto será, contudo, tratado no próximo post sobre Controle de Constitucionalidade, pois o conteúdo teve que ser dividido em algumas partes para que não ficasse muito extenso.



Esse post teve como fonte principal as lições do Professor Pedro Lenza na aula fornecida ao Saber Direito sobre o tema do Controle de Constitucionalidade, disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=XeAPtD0R_l0&t=13s.



Recomendo o estudo desta aula após a leitura deste post.